Renegociação ou reestruturação? Conceitos e tratamento contábil
- Axius Consultoria

- 14 de nov.
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De acordo com a última Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (“PEIC”) referente ao mês de outubro, da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (“CNC”), a parcela das pessoas que se declararam inadimplentes ficou em 30,5%, mantendo o recorde observado no mês anterior e representando a maior fatia da série desde o começo da pesquisa, em 2010 (dados divulgados pelo jornal Valor Econômico, na edição de 4 de novembro). Em outro recorde negativo, 79,5% dos respondentes se declararam atualmente endividados, contra 76,9% em outubro do ano passado, sendo que 13,2% dos inadimplentes não apresentam condições de quitar suas dívidas.
Na frente do crédito para pessoas jurídica, observamos debates se estamos na iminência de uma crise de crédito generalizada, ou se casos recentes de grandes corporações brasileiras enfrentando dificuldades em honrar as suas obrigações financeiras tratam-se, na verdade, de situações pontuais.
De qualquer forma, a manutenção da taxa de juros em patamar tão elevado quanto a nossa presente taxa básica, não ajuda muito no equacionamento da vida financeira dos tomadores de crédito, sejam as famílias ou as empresas.
Nesse cenário, ganha impulso a necessidade de credores e devedores negociarem termos e condições de dívidas na tentativa de viabilizar o seu pagamento, ou mesmo a recuperação parcial do crédito; e quanto antes melhor.
Uma vez fechada uma nova operação em que os termos da anterior foram repactuados, e agora entrando na área dos meus amigos da contabilidade da indústria financeira, recentemente tem surgido a dúvida em tela – estamos diante de uma simples renegociação ou de uma reestruturação de dívida?
De pronto, podemos afirmar genericamente que reestruturação é espécie do gênero renegociação, sendo que, até o advento do novo regramento contábil de instrumentos financeiros para as instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (“BCB”) – Resolução CMN no. 4.966/21 e Resolução BCB no. 352/23, cuja vigência conjunta em sua maior parte teve início em 1º. de janeiro deste ano, a distinção (ou especificação) entre tais conceitos na prática não fazia muita diferença para a contabilidade de tais entidades.
Na verdade, de acordo com art. 8º. da Resolução CMN no. 2.682/99, normativamente destacava-se apenas a renegociação, nela incluindo (§ 3º) “a composição de dívida, a prorrogação, a novação, a concessão de nova operação para liquidação parcial ou integral de operação anterior ou qualquer outro tipo de acordo que implique na alteração nos prazos de vencimento ou nas condições de pagamento originalmente pactuadas”. Daí extrai-se que a reestruturação, embora não diretamente nomeada, se apresentava de forma implícita pela citação dos institutos legais que usualmente a operacionaliza, porém não havia nenhuma distinção em termos negociais ou econômico-financeiros (e nem contábeis) em relação aos outros tipos de renegociação.
Entretanto, na regulamentação prudencial (Resolução CMN no. 4.557/17) e em suas atividades de supervisão das instituições reguladas e do monitoramento do mercado de crédito, o BCB, em linha com práticas internacionais, já considerava certa distinção, ou melhor especificação entre os dois conceitos. De acordo com referência constante do Relatório de Estabilidade Financeira (“REF”) de setembro de 2016, o Regulador indicava que “as renegociações, em sentido amplo, podem ser realizadas tanto seguindo parâmetros normais de mercado em relação a prazos, taxas e demais condições de pagamento [nesse caso, classificando-as como renegociações estritamente comerciais], quanto seguindo parâmetros que as instituições financeiras não admitiriam usualmente, mas os aceitam para solucionar eventual redução na capacidade de pagamento do tomador [nesse caso, tratando-se de reestruturações]”.
Assim, em um primeiro plano, podemos caracterizar as renegociações comerciais como renovações de linhas e operações de crédito para clientes que mantêm perfil de risco de crédito (capacidade de pagamento) adequado, alinhado ao apetite de risco da instituição e sendo de seu interesse a manutenção do relacionamento, tendo em vista, além das condições vigentes, o histórico apresentado pelo tomador em operações anteriores, como a pontualidade no pagamento de principal e encargos. Como exemplo, é indicada no REF a recontratação de operações de crédito consignado, com a finalidade de obtenção de recursos adicionais, de alongamento de prazos ou de redução de taxas, desde que em condições normais de mercado.
Mas também podemos entender que as renegociações comercias se amoldam ao endereçamento de dificuldades temporárias enfrentadas pelo tomador para satisfazer pontualmente suas obrigações financeiras, como por exemplo em função de reduções não previstas, mas gerenciáveis, em seu fluxo de caixa ou renda; situações em que a instituição aceita readequar os termos da operação, como prazo e valor de parcela, mas ainda atendendo condições normais de mercado.
Adicionalmente, também podemos observar a sua aplicação em situações de exceção, como as renegociações realizadas em função da pandemia da Covid-19, para as quais, de acordo com a Resolução CMN no. 4.803, de 9 de abril de 2020, foi permitido às instituições credoras retroagir a classificação das operações, segundo os critérios da Resolução CMN no. 2.682/99, para o nível de risco vigente em 29 de fevereiro de 2020 (em março daquele ano a OMS decretou o estado de pandemia em relação ao coronavírus e o Senado Federal aprovou o decreto legislativo que reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil em decorrência da pandemia), desde que i) na data de 29 de fevereiro de 2020 não apresentassem atraso igual ou superior a quinze dias no pagamento de parcela de principal e de juros, e ii) não houvesse evidências de incapacidade da contraparte honrar a obrigação nas novas condições pactuadas.
Vale ressaltar que para nenhumas das hipóteses aqui apresentadas, estamos tratando de renegociações meramente protelatórias, formalizadas com o intuito de evitar que a operação se apresente em atraso e/ou seja caracterizada como ativo problemático, prática que em todo caso deve ser evitada (inclusive em reestruturações).
Já as reestruturações de dívidas, o REF as identifica como um subconjunto das renegociações em sentido amplo, porém não se confundindo com as renegociações estritamente comerciais - “Considera-se como reestruturação de dívidas qualquer forma de renegociação em que o tomador enfrente dificuldades financeiras para honrar seus compromissos e a instituição financeira faça concessões, relativamente às condições de pagamento, que não faria em condições normais de mercado, com o objetivo de reduzir perdas” (definição similar também se observava na regulamentação prudencial). Importante destacar a informação do REF dando conta que o BCB estimava as reestruturações por meio de algoritmo interno que identifica as operações vencidas e convertidas em operações a vencer, sem pagamento integral dos valores em atraso (capitalização dos saldos em atraso); atualmente, as operações reestruturadas também devem ser informadas pelas próprias instituições no arquivo (Cadoc 3040) enviado ao Sistema de Informações de Crédito.
Tendo em vista tais aspectos, a reestruturação de dívidas se apresenta como um instrumento do processo e políticas de cobrança e recuperação de crédito das instituições, com o objetivo de limitar ou reduzir as perdas com crédito. Dentre possíveis concessões que usualmente as instituições lançam mão, destacam-se a extensão do prazo de pagamento, a suspensão temporária de amortização (carência), a redução da taxa de juros e do valor das parcelas, descontos sobre principal e juros, troca de dívidas de curto prazo por dívidas de longo prazo e a conversão da dívida em participação acionária (quando devedor pessoa jurídica).
Mas, retomando a questão do tratamento contábil de tais operações, temos que o novo regramento em linha com os conceitos acima, incorporou a distinção entre renegociações em sentido amplo daquelas que se caracterizam como reestruturações de dívidas, a partir de aspectos negociais e das condições creditícias do tomador, conforme podemos observar nas disposições constantes do art. 2º. da Resolução CMN no. 4.966/21 e da Resolução BCB no. 352/23, XX e XXI, a seguir:
“Art. 2º Para fins de regulação contábil de instrumentos financeiros, considera-se:
...
XX - renegociação: acordo que implique alteração das condições originalmente pactuadas do instrumento ou a substituição do instrumento financeiro original por outro, com liquidação ou refinanciamento parcial ou integral da respectiva obrigação original;
XXI - reestruturação: renegociação que implique concessões significativas à contraparte, em decorrência da deterioração relevante de sua qualidade creditícia, as quais não seriam concedidas caso não ocorresse tal deterioração;”
Assim, também para fins contábeis as reestruturações de dívidas passam a ser destacadas dos demais tipos de renegociações, tendo por base as suas características essenciais, quais sejam, concessões negociais, via de regra indesejadas e desvantajosas para a instituição credora, em face da deterioração da qualidade creditícia do devedor. Vale destacar, que a dívida anterior não precisa estar vencida para que nova operação seja caracterizada como reestruturação (como também não é necessário para a sua classificação como ativo problemático), mas basta que seja percebido que ela não será honrada sem que seja necessário o recurso às garantias em função da incapacidade de pagamento do devedor; em tais circunstâncias, a simples extensão de prazo é provavelmente uma concessão indesejada pelo credor.
Dessa forma, a classificação de uma renegociação como reestruturação depende de uma análise casuística, ainda que mediante a utilização de critérios aplicados de forma massificada para uma carteira de operações homogêneas (ex. crédito varejo gerenciado de forma massificada), que deve levar em conta os fatores que motivaram a renegociação, tendo em vista a avaliação das condições econômico-financeiras do devedor, identificando se ele enfrenta ou é provável que venha a enfrentar dificuldades para honrar suas obrigações financeiras, bem como se os termos pactuados da nova operação foram estipulados em condições compatíveis com as de mercado, ou se foi feita alguma concessão relevante a exemplo das indicadas em parágrafo antecedente.
São consideradas condições compatíveis com as de mercado, os parâmetros usualmente adotados pela instituição em operação de crédito semelhantes para tomadores de mesmo perfil de risco (Resolução CMN no. 4.693, art. 6º., § 2º.). Um teste de verificação simples é indagar se a instituição faria a mesma operação (mesmas condições da renegociação) para um cliente novo como o mesmo perfil de risco – se a resposta for não, muito provavelmente estamos diante de uma reestruturação.
Por fim, destaca-se que os critérios adotados pela instituição para definir e distinguir renegociação (comercial) e renegociação devem ser formalizados em mantidos à disposição do BCB.
Efeitos contábeis
As renegociações comerciais não trazem maiores questões em termos de reflexos contábeis, embora requeiram o tratamento conforme disposto no art. 23 da Resolução CMN no. 4.966/21, a saber:
“Art. 23. No caso de renegociação de instrumentos financeiros não caracterizada como reestruturação, a instituição deve reavaliar o instrumento para que passe a representar o valor presente dos fluxos de caixa descontados pela taxa de juros efetiva, conforme as condições contratuais renegociadas.”
Eventuais diferenças apuradas entre o novo valor presente da operação renegociada (ou da nova operação) e o anterior valor contábil devem ser reconhecidas no resultado do período em que a renegociação ocorrer. No mais, os rendimentos, agora apurados de acordo com a nova taxa de juros efetiva, continuam sendo apropriados ao resultado de acordo com o regime de competência. No que tange aos parâmetros de cálculo da respectiva provisão para perdas esperadas, pode haver ou não um aumento significativo de risco em relação ao nível anterior.
Já as reestruturações apresentam maiores implicações e pontos de atenção, abordados na sequência.
Primeiramente, temos a correlação da reestruturação com a definição de ativo problemático, uma vez que (a reestruturação) se apresenta como um dos elementos caracterizadores deste, conforme o art. 3º da Resolução CMN no. 4.966/21:
“Art. 3º O instrumento financeiro se caracteriza como ativo financeiro com problema de recuperação de crédito (ativo problemático) quando ocorrer:
I - atraso superior a 90 (noventa) dias no pagamento de principal ou de encargos; ou
II - indicativo de que a respectiva obrigação não será integralmente honrada nas condições pactuadas, sem que seja necessário recorrer a garantias ou a colaterais.
§ 1º A instituição deve considerar prazo inferior ao estabelecido no inciso I do caput diante de evidência de que, nesse prazo, há redução significativa da capacidade financeira da contraparte de honrar suas obrigações nas condições pactuadas.
2º O indicativo de que trata o inciso II do caput inclui:
I - constatação de que a contraparte não tem mais capacidade financeira de honrar a obrigação nas condições pactuadas;
II - reestruturação do ativo financeiro associado à obrigação; ...” (grifo nosso)
Como consequência imediata da classificação da operação reestruturada como ativo problemático, observa-se a vedação do reconhecimento no resultado de receita de qualquer natureza ainda não recebida, ou seja, a receita com o ativo financeiro reestruturado-problemático passa a ser reconhecida pelo regime de caixa, de acordo com o art. 17 da Resolução CMN no. 4.966/21:
“Art. 17. É vedado o reconhecimento, no resultado do período, de receita de qualquer natureza ainda não recebida relativa a ativo financeiro com problema de recuperação de crédito.” (grifo nosso)
Tal vedação, contudo, não se aplica aos ajustes relativos à variação cambial ao valor justo, como veio esclarecer a Instrução Normativa BCB n° 560, de 6/12/2024.
Outro efeito da reestruturação de um ativo financeiro, como consequência direta da sua caracterização como ativo problemático, é o aumento da respectiva provisão para perdas esperadas associadas ao risco de crédito, aplicável no geral a todos os ativos com problema de recuperação de crédito.
Não obstante, um aspecto que pode gerar certa controvérsia e requer maior atenção quanto aos efeitos contábeis da reestruturação, diz respeito ao tratamento das diferenças apuradas na reavaliação do instrumento reestruturado. Isso em função da disposição constante do art. 22 da Resolução CMN no. 4.966/21, destacada a seguir:
“Art. 22. No caso de reestruturação de ativos financeiros, o valor contábil bruto do instrumento deve ser reavaliado para representar o valor presente dos fluxos de caixa contratuais reestruturados, descontados pela taxa de juros efetiva originalmente contratada. [até 31 de dezembro de 2026, é facultado o uso da taxa de juros efetiva repactuada, conforme art. 71]
§ 1º Ao valor contábil bruto do ativo financeiro reestruturado devem ser acrescidos os custos de transação e deduzidos eventuais valores recebidos na reestruturação do instrumento.
§ 2º A diferença resultante da reavaliação mencionada no caput deve ser reconhecida no resultado do período em que ocorrer a reestruturação.” (grifo nosso)
Considerando que a diferença pode ser negativa ou positiva, da inteligência do dispositivo em destaque extrai-se que eventual ganho auferido na reestruturação deve ser reconhecido no resultado pelo regime de competência, no caso, no período em que ocorrer a reestruturação, independentemente do seu recebimento. Esse entendimento pode ser reforçado pelo teor do art. 90 da Resolução BCB no. 352/23, que determina a divulgação, dentre outras informações em notas explicativas, do ganho ou a perda líquida reconhecida quando da reestruturação (inciso IX, item c).
Vale destacar que tal critério contrasta com o regramento anterior, que determinava que eventual ganho deveria ser apropriado ao resultado pelo regime de caixa - apenas quando do efetivo recebimento (§ 2º., do art. 8º. da Resolução CMN no. 2.682/99).
Trata-se de uma mudança de posicionamento relevante e, embora esteja em certa medida alinhada com o critério da norma internacional (ver parágrafo 5.4.3 do IFRS 9 / CPC 48), destoa da orientação prudencial adotada pelo BCB na convergência às práticas internacionais de contabilidade. No próprio caso em particular (regras contábeis para instrumentos financeiros), observa-se uma série de adaptações de ordem prudencial realizadas pelo Regulador em relação à norma internacional de referência (IFRS 9 / CPC 48), como o stop accrual, a definição de pisos mínimos de provisão para perda esperada, a classificação do ativo financeiro com mais de 90 dias atraso como ativo problemático de forma irrefutável, dentre outras elencadas na própria exposição de motivos da Resolução CMN no. 4.966/21.
Ademais, o critério atual apresenta um aparente conflito com a vedação do art. 17 (vide acima) ao reconhecimento de receita de qualquer natureza ainda não recebida com ativo problemático (salvo os ajustes de variação cambial ao valor justo), classificação aplicável às operações reestruturadas, ou, repisa-se, a reestruturação é um dos parâmetros que caracteriza um ativo financeiro com problema de recuperação. Mas, de outra forma, podemos entender que o Regulador implicitamente optou por uma exceção àquela vedação, de forma a manter nessa questão o alinhamento com a norma internacional.
De qualquer forma, dadas as circunstâncias que levam à uma reestruturação de dívida e suas características (vide comentários acima), o reconhecimento contábil de ganhos não recebidos na data da sua realização, ainda que compensados parcialmente pela respectiva provisão para perdas esperadas (salvo se corresponder a 100%), via de regra devem representar casos de exceção muito bem fundamentados em análises realistas das condições de pagamento do devedor e da efetiva perspectiva de recuperação do crédito, de forma a se evitar o registro de receitas artificiais.
Por fim, sem a intenção de se aprofundar nos impactos fiscais, apenas destaca-se que a reestruturação corresponde à recuperação de crédito e acarretará a reversão (tributável) de eventual provisão para perdas incorridas já deduzidas da base fiscal, além do eventual ganho registrado também vir compor a base tributável.
Este artigo foi escrito por Claudio Padial - Sócio Consultor Axius.



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